"Durmo sozinho, com algumas precauções: uma cadeira travando a porta, se alguém abrir a janela, uma corda derruba um vaso da penteadeira e eu acordo, debaixo do travesseiro está a pistola, e no lugar da minha mulher, um taco de beisebol." Provavelmente você já viu cenas como essa em algum filme do Scorsese, mas eu garanto que esse estilo de vida era comum entre os músicos de jazz durante a década de 1960, principalmente os jazzistas de apoio, pouco conhecidos, esses costumavam andar em grupos para tocar nos clubes; corriam o risco de morrer todos os dias, pelas mãos da polícia, da Ku Klux Klan e outros bandos racistas. Tentativas de linchamento faziam parte da normalidade.
Após uma apurada audição de diversos discos, passei a concordar plenamente com Wu Ming 1, autor do brilhante New Thing: não da pra aguentar o cool.
Como o escritor define: "O noneto de Miles Davis pode ser, mas as coisas da Costa Oeste, Chet Baker... Dave Brubeck! Eu não via a hora que aquilo terminasse." O free jazz surgiu no fim dos anos 50, se solidificando como estilo após se tornar título de um álbum de Ornette Coleman, mas para os autênticos arquitetos dessa nova onda, rótulos era coisa de branco. Eles criticavam até a palavra jazz, para eles era "a música" e ponto final.
Coltrane acabou com a raça do jazz nutella da Costa Oeste.
No trecho seguinte, veremos com exatidão como Wu Ming 1 detalha o terreno em que estamos pisando.
A nova música, no início, era assim: o sax de Ornette e o trompete de Don Cherry eram os cães, seguravam a música pela guia. Prestando atenção, você ouvia o bop, ouvia Bird, Monk e Miles, e mais pra trás ouvia Duke com toda a Basin Street, o gospel das igrejas batistas, o blues do Delta, o pacto com o diabo de Robert Johnson, os respingos de saliva da gaita de Sonny Boy... Mais pra trás ainda, você houvia a escravidão, o último rufar do tambor antes que o seu antepassado fosse jogado num navio, ouvia os pretos putos da vida...
1957 é o ano do "despertar espiritual" de John Coltrane, ele acaba se afundando na heroína e é expulso da banda por Miles Davis. Coltrane decide encarar a abstinência trancado em um quarto na Filadélfia. Depois vai para Nova York, grava com Thelonious Monk e começa a tocar no Five Spot.
Claro que o processo de desintoxicação é bem demorado. Já passei por cinco internações e posso afirmar: um processo de reconstrução humana e artística é bem demorado. Coltrane foi rápido e forte o suficiente para em 1965 se tornar um deus. Com A Love Supreme, o cara ganhou uma enxurrada de prêmios: disco do ano; melhor sax tenor do ano; jazzista do ano e a porra toda. Wu Ming 1 recorda que "na conceituada revista Chronicler, recebeu até o primeiro lugar entre os 'maratonistas do jazz', conseguindo tocar dez horas sem parar."
Pesquisa, Redação e Edição: Carlos Martins
Por Henrique Maranhão
Fonte: livro New Thing
Foto: Reprodução