Ao meio dia, o movimento no viaduto da BR-116, próximo à Base Aérea de Fortaleza, é intenso. Nas pistas, centenas de veículos se apressam ao almoço; enquanto debaixo do concreto, como num mundo invertido e invisível, dezenas de pessoas compartilham o vazio: de comida, de água, de teto e de segurança.

Mais de 50 famílias, incluindo 70 crianças, vivem num conglomerado de barracos de lona e papelão que aumenta dia a dia. Antes da pandemia, eram cerca de 10 pessoas. Dois anos depois, elas se dizem mais de 200. Gente que prova que “ir parar debaixo da ponte” é mesmo o ápice da pobreza.

A dona de “casa” Flávia Câmara, 43, chegou por lá junto aos filhos, ao marido e ao cachorro Black, em 2020, quando os bicos de faxina e em bufês sumiram, no isolamento social. Sem condições de continuar pagando aluguel, restou “descer” da rua para baixo do viaduto.

No barraco ao lado do dela, que “já derrubaram e tentaram tocar fogo”, vivem a filha de 25 anos e o neto de 2, já nascido num contexto em que os adultos dormem com um olho aberto e o outro fechado, alertados pela insegurança – não só urbana, mas alimentar.

SOB A MIRA DA VIOLÊNCIA

As dificuldades vão além das óbvias: a sociedade não só ignora o “micro bairro” do qual Flávia faz vezes de líder comunitária, mas o maltrata. “Aqui tem muito rato. Os motoristas param o carro e jogam lixo aqui. Quando chove, entra água e lixo nos nossos barracos.”

Do “lado de cima”, chove até garrafa de cerveja. Semana passada, uma quase quebrou nas cabeças das crianças que brincavam por ali, entre elas os 3 filhos de Roberta Oliveira, 39, que foi parar lá porque precisou “escolher” entre ter um teto ou comer.

SOB O PESO DA FOME

Essa face perversa da situação de rua é um dos principais motivos para a jovem Dariane de Jesus, 29, manter os filhos de 7, 8 e 11 anos na escola. Passam o dia lá porque a mãe “não quer que eles sejam judiados”. Estão sob o viaduto há quase 1 ano, porque pagar aluguel, em plena epidemia de desemprego, não era mais uma opção. 

Além disso, é na escola onde eles podem comer. 

É esse o motivo, aliás, mais citado entre as mães quando questionadas se, nesse contexto em que tudo o que têm é a negação de direitos, dá para garantir, pelo menos, a educação. “Vão, sim. Lá tem a merenda todo dia.”

DE ONDE VEM A AJUDA

Parte das doações de roupas e alimentos chega por meio do projeto Uece Solidária, da Universidade Estadual do Ceará (Uece), coordenado pelo professor Lucineudo Irineu e outra colega docente. 

Na tentativa de ajudar as pessoas num lugar “onde os braços da política social não chegam”, o projeto está em campanha de arrecadação, com foco em conseguir, principalmente, a maior demanda das famílias: água e comida.

O QUE DIZ O PODER PÚBLICO

Segundo Flávia, intitulada “líder comunitária” de quem vive debaixo do viaduto, 54 famílias, contendo 69 crianças e “140 e poucos” adultos habitam os barracos. A maior parte, ela afirma, já buscou conseguir o Aluguel Social. Sem sucesso. 

Ela afirma, ainda, que uma equipe da prefeitura já visitou o local para contabilizar os “moradores”, e que o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), gestor das BRs, já determinou a remoção das famílias. O DNIT confirmou, em nota, que "já solicitou o auxílio da Prefeitura para adoção de uma solução conjunta".

Em nota, a Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) afirmou que “não há processo referente a esse assunto pelo DNIT” no órgão, e que acompanha as famílias no Creas Luciano Cavalcante, "por meio dos serviços, programas, projetos e benefícios da política de assistência social”.

A reportagem também perguntou se há algum trabalho de assistência social a essas famílias, para acesso a trabalho, saúde, alimentação e moradia; se há acompanhamento da situação de saúde e educação das crianças, e se existe perspectiva de remover essas famílias para habitações. Não houve resposta específica para esses pontos.


Pesquisa, Redação e Edição: Carlos Martins

Por Theyse Viana

Fonte: Portal | Diário do Nordeste

Foto: Reprodução/Kid Júnior