Nascida e criada em Caucaia, mestra da cultura aprendeu sozinha o ofício, formou mais de 3 mil brincantes e não pretende parar nunca.

Vestido laranja, detalhes em verde e vermelho, adorno floral na cabeça. Pulseira de contas, cabelo arrumado, sandália de couro no pé. É Maria José Costa Carvalho, 83, quem surge no portão cinza quando metade da manhã avança. “Bom dia, sejam muito bem-vindos”, anuncia com sorriso largo e sincero. Quer que a própria casa seja a nossa também. Consegue.

Essa simpatia é o carro-chefe da mestra da cultura conhecida como Mazé das Quadrilhas. Foi o que nos atraiu para o domicílio localizado no bairro Cigana, em Caucaia, Região Metropolitana de Fortaleza: conhecer o que a faz ser a principal referência no Ceará quando o assunto é uma das mais famosas tradições juninas. 

São 53 anos oficiais de trabalho e toda uma vida dedicada a ele. “Tenho pra mim que esse dom foi dado por Deus. Carrego isso no coração porque, pra fazer uma quadrilha sendo adolescente e sem nunca ter feito antes, é um desafio. Como foi que eu consegui?”, indaga a si mesma, lançando a pergunta também para nós. 

É coisa de paixão. Desde criança Mazé é propensa à arte e à cultura. Antes de marcar passo no solo e gritar Anarriê, ela já cantava, dançava e fazia pequenos shows para a família. Uma autodidata – sobretudo porque nenhum dos pares tinha inclinação para o meio. “Ninguém me deu ideia, ninguém me ensinou nem disse nada”. Mas havia prática bonita gestada cedinho.

A irmã mais velha da mestra se utilizava de um rádio de pilha para chamar o sono. À noite, em volume baixo e muito carinhoso, Luiz Gonzaga irrompia das caixas de som. “Atenção pessoal, vamos dançar a quadrilha/ O quadrilheiro é o professor Raimundo, vindo diretamente de Maranguape/ O homem é bom, o homem é espetacular/ Muito respeito, muita ordem, preste atenção/ Professor Raimundo, assuma o comando”.

“Na adolescência, lembrei disso. Recordei que o grande rei Luiz Gonzaga falava em passeio de dois, de quatro, de damas, dançava e tudo. Tinha meus quatro pra cinco anos, e penso que a vontade de fazer quadrilha veio daí. Depois Deus me deu inteligência, o saber, a educação e o respeito”. Sentimentos convertidos em realizações.

APRENDER A DANÇAR QUADRILHA

Faceira, sentada em uma cadeira de balanço roxa no pátio tomado por vestidos e bandeiras juninas – varal feito especialmente para nos receber – Mestra Mazé quase sempre olha para o quintal enquanto conversa. Hoje com mato alto e desnivelado, o espaço um dia sediou os ensaios de várias quadrilhas lideradas por ela. Cheiro de saudade e vigor.

A lembrança a faz enumerar os passos necessários para bem viver o rito. Começa com a caça aos brincantes. Importa juntar gente disposta a dançar. Na sequência, o ensaio. É quando se escolhe quem vai, de fato, brincar quadrilha – sim, porque nem todo mundo está pronto. “Até hoje tenho essa experiência de saber quem realmente tem jeito pra coisa e quem não tem”.

NÃO DEIXAR A TRADIÇÃO MORRER

Amor que convoca ação: Mestra Mazé de repente levanta para ensinar este que vos escreve a brincar quadrilha. Evolução, serrote e túnel são palavras de ordem. Com toda a energia, ela arrasta o pé no quintal-salão e canta a plenos pulmões: “É noite de São João/ Vai amanhecer o dia/ É madrugada e não vem quem eu queria”.

Reconhecida Mestra da Cultura pelo Governo do Estado em 2015 – com trajetória contada em “Livro dos Mestres - O legado dos mestres: cultura e tradição popular no Ceará”, organizado por Dora Freitas e Silvia Furtado e publicado em 2017 – Mestra Mazé finaliza a prosa afirmando que os três filhos, sete netos e quatro bisnetos confirmam o sangue quadrilheiro, e que, em breve, quer abrir ao público o pequeno museu construído no próprio lar.

Troféus, certificados, livros e mais de 50 vestidos fazem parte do acervo. “Essa é a sua riqueza?”, pergunto. “Isso, e ser feliz com todos, ajudar os quadrilheiros, compreender as pessoas, ser amiga, ajudar no que eu puder e estender o amor ao São João”, arremata. “Se Deus quiser, pretendo continuar até o dia que Ele permitir”.


Pesquisa, Redação e Edição: Carlos Martins

Por Diego Barbosa

Fonte: Portal | Diário do Nordeste

Foto: Reprodução/Ismael Soares