Por mês, mais de 500 denúncias de violência contra esse público no Estado chegam ao Disque 100
“Ele não me machucava… Só com palavras. Ela deu pra me agredir. Me empurrava, me segurava pelas orelhas e sacudia, me humilhava.” As cenas de abuso não deveriam, nem de longe, se referir a isso, mas descrevem o inimaginável: atitudes de filhos contra a mãe idosa.
Apesar da “fumaça na vista” causada pela catarata, as imagens do que viveu brotam nítidas na memória de Ana*, 79, ao relatar, direto de uma Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI) em Fortaleza, as violências que sofreu de alguns dos 15 filhos que pariu.
Assim, ela se soma a uma estatística perversa: no Ceará, entre janeiro e o dia 16 deste mês, mais de 3 mil denúncias de violência contra a pessoa idosa foram feitas à Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (Disque 100). Do total, 1.570 foram cometidas pelos próprios filhos.
9.467 - violações contra pessoas acima de 60 anos no Ceará foram registradas no Disque 100 no primeiro semestre de 2024, delatadas por meio de 3.144 denúncias.
Para Ana*, que terá identidade preservada, as violências se acumulam na biografia. Começar a trabalhar aos 7 anos em lavouras de cacau, porém, nem entra na lista do que “dói muito”: esta é composta, principalmente, pelos maus tratos praticados pelos filhos.
“Eu morava em outro estado e vim pra visitar meu filho por 15 dias. Fiquei 2 anos. Morava com ele e a mulher, ele se separou dela e me deixou lá. Filho é igual nambu: só fica com a mãe até criar pena. Ele era grosseiro demais. Eu me sentia muito, muito mal”, relembra a aposentada, com uma fala tão serena que nem combina com o que narra.
Até o início deste ano, antes de vir para o Ceará, Ana* morava sozinha – mas, por precisar de auxílio para atividades domésticas e após ter sofrido agressões de uma cuidadora, a aposentada foi forçada a se mudar para a casa de uma das filhas.
“Um belo dia, ela entrou lá em casa catando tudo, sem minha permissão, sem perguntar minha opinião. Levou tudo pra casa dela, pra eu morar com ela. E aí deu pra me agredir”, relembra a idosa, cujo benefício previdenciário também era mexido pela filha.
Além das agressões físicas, verbais e patrimoniais, a filha chegou a restringir as saídas de casa e a comunicação da mãe com outras pessoas.
Eu não podia pegar o telefone, que ela ameaçava que se eu dissesse a alguém o que ela tava fazendo comigo, ela ia dar queixa de mim. Ana* - 79 anos.
As dimensões física e psicológica não são as únicas faces da violência contra a pessoa idosa. Outra violação comum que chega aos órgãos de proteção é a institucional, fortalecida pelo etarismo, como a sofrida pela aposentada Ana Lúcia Gondim, 69.
A cearense conta que uma empresa de planos de saúde cancelou o contrato dela e de colegas de trabalho devido ao avanço da idade do grupo de trabalhadores. Hoje usuária de outra companhia, ela observa a queda de coberturas e teme passar por caso semelhante.
“São situações em que a gente se vê, enquanto idoso, como o ônus da sociedade. É aviltante. O que a gente pode fazer? Em todas as áreas, o idoso é vítima da violência, do abuso: dentro de casa, na rua, ou pela hipossuficiência, por ser mais vulnerável fisicamente…”, desabafa.
POLÍTICAS PÚBLICAS FALHAS
Para a assistente social Vejuse Alencar, presidente da Associação Cearense Pró-Idosos (Acepi), a raiz de diversas demandas da pessoa idosa no Ceará é a falta de políticas públicas específicas que acompanhem o envelhecimento populacional no País.
“Temos um número crescente de pessoas idosas, uma dificuldade de acessos à saúde, ao lazer, e isso faz com que essas pessoas que estão tendo o direito de envelhecer mais não tenham dignidade nesse envelhecimento. E aí começam as violações”, avalia.
A assistente social ilustra que uma falha flagrante no cenário cearense é a falta de ILPIs e de Centros Dia públicos para esse público.
Temos uma demanda crescente de idosos que estão sem poder morar só, porque precisam de cuidados continuados. A família não tem como acolher e o Estado não oferece estruturas. São as maiores queixas, famílias que nos ligam e dizem que não têm como cuidar. Vejuse Alencar - Assistente social e presidente da Acepi
A falta de ILPIs públicas, então, aumenta o número de idosos expostos a essas problemáticas, segundo critica a presidente da Acepi. “Temos uma ILPI para todo o Estado, com capacidade para 70 idosos. É uma dívida do Estado com a pessoa idosa.”
A única ILPI pública do Ceará é a Unidade Abrigo Olavo Bilac, mantida pela Secretaria da Proteção Social (SPS). O Censo Demográfico 2022, do IBGE, mostrou que o Estado tem 1.290.533 idosos, e que aqueles com mais de 65 anos já equivalem a 10,4% da população total.
“Não temos uma ILPI pública municipal em Fortaleza. Das 56 na capital e Região Metropolitana, todas são filantrópicas ou privadas, com condições de serviços que precisam muito de fiscalização e monitoramento”, ressalta Vejuse.
Precisamos sensibilizar e chamar os gestores para a responsabilidade de atender esse público que já contribuiu muito com a sociedade, tanto de forma laboral quanto com suas histórias de vida. Vejuse Alencar - Assistente social e presidente da Acepi
O Diário do Nordeste contatou a Secretaria da Proteção Social (SPS) para saber:
- Se há perspectiva concreta de ampliar a rede de acolhimento, com novos abrigos;
- Quais os desafios do Estado para isso;
Com que equipamentos de acolhimento públicos a população idosa do interior pode contar.
A Pasta não respondeu até a publicação desta reportagem.
A Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) de Fortaleza foi questionada sobre pontos semelhantes, e informou, por meio de nota, que "foi finalizada a contratação de empresa para construção de Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI)" e que, no momento, "a Prefeitura define, junto à empresa contratada, o local de instalação do equipamento".
Segundo a SDHDS, "a ILPI terá capacidade de abrigamento para 100 idosos em três níveis de assistência: grau I (idosos independentes); grau II (idosos com dependência em até três atividades de autocuidado) e grau III (idosos com dependência em todas as atividades de autocuidado e ou comprometimento cognitivo)".
A Pasta complementa ainda que "mantém um Centro Dia de Referência da Pessoa Idosa, no bairro Cristo Redentor, com atendimento especializado e oferta de cuidados a 50 pessoas. Entre os serviços ofertados estão alimentação, atividades para mobilidade e oficinas terapêuticas como complemento aos cuidados familiares. Os idosos são acompanhados por psicólogos e assistentes sociais em atendimentos individuais e coletivos, visitas domiciliares e encaminhamentos para rede socioassistencial e intersetorial".
REDE DE PROTEÇÃO
Demandas ligadas a violações dos direitos e da integridade do idoso no Ceará, sejam individuais, sejam coletivas, são tratadas pelo Ministério Público do Estado (MPCE), como explica Enéas Romero, promotor de Justiça e secretário-executivo das Promotorias de Justiça de Defesa da Pessoa Idosa e da Pessoa com Deficiência de Fortaleza.
“A demanda individual mais comum é a violação dos direitos do idoso, seja por violência ou abandono e negligência. O que acontece com alguma frequência é que o idoso fica desamparado, precisa de cuidados – o que a Constituição estabelece que é dever da família, do Estado e da sociedade”, destaca.
Em gerações anteriores, era comum que houvesse muitos filhos, hoje há menos pessoas para cuidar do idoso. E o cuidado é majoritariamente feminino. Isso não está sendo pensado nas políticas públicas. Temos necessidade de centros-dia e outras atividades. Enéas Romero - Promotor de Justiça do MPCE
O promotor, assim como a presidente da Acepi, alerta para a necessidade de criação de mais equipamentos – como ILPIs e Centros Dia – para acolher essa população, sobretudo a parcela mais vulnerável socioeconomicamente.
“Fortaleza tem quase 3 milhões de habitantes e não tem nenhuma ILPI municipal. Existe uma ACP ingressada pelo MPCE contra o Município e, na última audiência, foi apresentado um cronograma para implantação da ILPI, mas não parece que vai acontecer ainda neste ano”, lamenta Enéas.
8,5 MIL - procedimentos foram realizados, entre janeiro e maio deste ano, no Núcleo Especializado no Atendimento à Pessoa Idosa da Defensoria.
“Existe um preconceito em relação ao idoso, um mundo cada vez mais veloz onde alguns tratam o idoso como um fardo. A diminuição das relações de afeto, a dissociação dos vínculos familiares, até a dificuldade financeira das famílias contribuem para isso”, opina.
Trabalhar políticas específicas, pondera o defensor, é crucial na preparação do Estado para o envelhecimento populacional. “Melhorar a infraestrutura de acesso às instituições e espaços públicos; criar Centros Dia e ILPIs custeadas pelo poder público, divulgar os direitos da pessoa idosa. Tudo isso perpassa por uma mudança educacional e cultural.”
Pesquisa, Redação e Edição: Carlos Martins
Por Theyse Viana
Fonte: Portal | Diário do Nordeste
Foto: Reprodução/Theyse Viana